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Textos Temáticos - Males Acometidos:
02/10/2018

Nota preliminar:

Esse texto é o primeiro de uma série de textos que pretendo publicar aqui sobre contos populares antigos que foram elevados à categoria de mitos. Mitos e Tragédias são narrativas ancestrais que se tornaram histórias imortais contados através das gerações pela cultura oral, pelos cantos, cerimoniais, liturgias, e, antigos e novos escritos que de certa forma atualizam essas histórias revivificando conteúdo do inconsciente profundo.

Essas histórias, que mesmo vindas de um tempo longínquo, sempre continuam sendo atuais e relevantes para nossas vidas.

• As Babuchas de Abu Kazen - 19/08/2018 

Abu Kasem era um riquíssimo comerciante de Bagdá, famoso pela fama de bem sucedido nos negócios. Mas também conhecido por usar calçados velhos e esfarrapados, que ele preferia remenda-los ao invés de trocar por pares novos.

-           O estado daquelas babuchas!

(calçado típico do oriente, “sandálias”).

Suas babuchas eram velhas e remendadas, comumente alguém o vinha questionar sobre suas babuchas. Abu Kazen, que nunca trocara aquelas sandálias por novas, ou outra em melhor estado, respondia às implicações alheias dizendo que elas ainda davam para serem usadas.

Pode-se dizer, que em seu íntimo ele gostava das babuchas, e não tinha intenção de se desfazer delas. Seguia sua vida caminhando calçado de suas velhas babuchas.

  

Nosso personagem tinha fama de ser avarento. Por ser o dono daquelas babuchas remendadas, estava sujeito aos dizeres do povo, que poderia apontar o estado daquelas babuchas como exemplo de sua prática de guardar dinheiro ao invés de gastá-lo.

Abu Kazen não era do tipo que compartilhava de suas farturas e sucessos, mas sim guardava o seu dinheiro ao invés de dispor de quantias para outra finalidade que não fosse a de aumentar o seu montante de ganhos.

 

A história dá-se início quando Abu Kazen fez um ótimo negócio, comprando um produto que lhe geraria grande lucro e fartura na revenda. 

 

Muitos invejaram e admiraram seu bem afortunado negócio, e se puseram a observar a sequência do protagonista. Algumas pessoas mais próximas esperavam que o comerciante oferecesse um evento para comemorar e compartilhar o seu bem sucedido empreendimento, afinal era uma ocasião oportuna para isso! E também ele poderia trocar aqueles velhos pares de babuchas por novos.

 

Ao invés disso, para comemorar seu sucesso, nosso personagem foi tomar um banho nas termas. Terminado seu banho, Abu Kazen foi naturalmente ao vestiário, mas lá não encontrou suas velhas babuchas, por fim encontrou em seu lugar um belíssimo par de babuchas novas e concluiu que elas lhe serviriam bem. De fato, ele pensou se tratar de algum tipo de surpresa ou presente de um amigo que já não aguentava mais vê-lo usando aquelas babuchas velhas. Baseando-se nisso nosso personagem vestiu aquelas belas babuchas novinhas e foi embora do banho. No mesmo dia, o juiz da cidade também foi banhar-se no local, e para a infelicidade de Abu Kazen, o juiz não encontrou as suas belas babuchas em lugar nenhum, seus criados reviraram o estabelecimento e só o que encontraram foi um velho e remendado trapo de sandálias. O juiz sentiu-se ultrajado e enfurecido, quis procurar o responsável por aquela injúria. Por fim os criados foram encontrar as babuchas do juiz nos pés de Abu Kazen. De fato não era tão difícil de descobrir quem era o dono daquelas babuchas velhas, que de forma muito mal sucedida tentou ser trocada por novas, só de vê-las já sabiam serem as babuchas de Abu Kazen, e a fama de avarento completava a cena sugerindo as possíveis intenções de nosso personagem ter agido de má fé para trocar desonestamente suas velhas babuchas afim de não ter de gastar comprando novas.  

 

Abu Kazen foi acionado judicialmente, sendo obrigado a devolver aquelas belas babuchas que não lhe pertenciam, além de pagar grande quantia para não ser preso. Irritado que ficou com suas babuchas, que agora lhe retornavam trazendo injúria, vergonha e prejuízo. Mal sabia ele, que aquele era só o começo, pois as babuchas ainda lhe retornariam muitas vezes e cada vez lhe trazendo mais injúrias, vergonhas e prejuízos crescentes!

O personagem resolveu então que iria desfazer-se delas e então as atirou pela janela no rio que passava próximo de sua casa. Suspirou aliviado, achou ter resolvido o problema. Dias depois, as babuchas reaparecem como uns trapos molhados nas redes de pescadores. Esses que ficaram furiosos pelo estrago que os remendos das babuchas fizeram na rede de pesca, então atiraram no ar com força aquelas babuchas lameadas, que acidentalmente voltaram para a casa de seu dono, voando de volta e quebrando as janelas. As babuchas colidiram com as frágeis iguarias que Abu Kazen havia comprado e deixado preparadas para sua grandiosa venda. O plano de dar grande lucro na revenda do negócio arrebatado ali ruiu.

Aquelas babuchas cheias de lama causaram grande sujeira e prejuízo arruinando o seu negócio!

Toda aquela situação deixou Abu Kazen enfurecido com as babuchas, por fim, pode-se dizer que xingando e revoltado com aquelas babuchas, ele resolve então enterrá-las do jardim. Entretanto, seu vizinho que discretamente o observava intrigou-se ao ver um homem rico que dispunha de tantos criados cavar um buraco no jardim. Desconfiado o vizinho então pensou se tratar de tesouros escondidos e denunciou o nosso herói às autoridades. Afinal segundo suas leis, tudo que fosse encontrado enterrado pertencia ao governo. Abu Kazen volta a ser julgado no tribunal e não consegue se inocentar explicando que o buraco que fazia era apenas para enterrar as suas malditas babuchas! De início muito zombaram daquele estranho discurso de defesa, mas quanto mais ele tentava se explicar, mais culpado ele parecia.

Novamente recebeu uma multa pesada e suas babuchas foram devolvidas, já que o cobrador de impostos não queria ficar com elas.

 

Inconformado com a situação Abu Kazen parte para uma nova tentativa, levando as babuchas pra fora da cidade e, bem afastados dali, as lança num lago. No entanto o lago fazia parte do reservatório de água da cidade e as correntezas levaram aquelas babuchas a entupir um dos canos do sistema de abastecimento de agua, afetando muitas casas, comércios, criações e plantações da cidade.

 

Quando os técnicos de manutenção fizeram os reparos e identificaram ali as babuchas como causadoras de todo o transtorno público, também identificaram seu dono. Abu Kazen novamente foi levado a julgamento e pagou uma enorme multa.

 

Abu Kazen decidiu então queimar aquelas babuchas, como ainda estavam molhadas, deixou-as para secarem na varanda. Um cachorro que passava por lá, se interessou por aqueles farrapos engraçados e os catou para ​brincar. O cachorro acabou arremessando-as no ar. As ​babuchas rodopiaram seus voos úmidos no ar e caíram com força na cabeça de uma moça que caminhava por ali e estava grávida. Com a pancada ela caiu, se machucou e perdeu o bebê.

Abu Kazen foi processado, culpado e lá veio mais uma enorme desgraça seguida de prejuízo para o dono daquelas babuchas. O avarento, após pagar alta indenização e desesperado, proclama ao juiz que suas babuchas são a causa da sua ruína e pede para que seja declarado inocente das futuras ocorrências que aquelas babuchas endiabradas poderiam lhe causar! Desta forma nosso personagem foi absolvido, por meio de seu suplício que no momento não pôde deixar de ser atendido. Afinal foi de considerável tamanho os absurdos e ridículos que aquele homem havia sofrido nas mãos daquelas babuchas!

 

Nessa gama de julgamentos que passou Abu Kazem, sempre culpado merecedor das sentenças lhe incumbidas, foi se retocando e assim tingindo-o de tom mais forte em sua fama de avarento. Seus sentimentos de vítima por estar sofrendo de artimanhas de babuchas endiabradas não o traziam afago, ainda mais por que tudo o que ele queria era apenas se livrar das babuchas para seguir com sua vida. Pelo visto a tarefa não deu certo, sua vida não pôde seguir sem ser marcada pela suas babuchas

Nosso herói viveu desventuras e foi julgado como culpado de escarnecedoras penas que o dilapidaram na sua até então ostentadora saúde financeira.

Seriam tais penas e multas a única forma de Abu Kazen fazer a expiação de seus crimes e pecados? Seria nosso personagem merecedor de tamanha tragédia? Ora, por que não! Se afinal era ele o proprietário, logo, responsável por aquelas babuchas...

Oque mais podem significar essas babuchas? Qual o sentido profundo que se pode entender desse mal que fora acometido à Abu Kazen?

 

Uma citação da autoria de Cristina Rodrigues Franciscato (em artigo publicado no site: www.jcnet.com.br em 28/12/2013) conta que narrador oriental ao terminar essa história, profere uma conclusão ou “moral da história”, cita: “Abu Kasem aprendeu, pagando enorme preço, o mal que pode ocorrer a alguém que não troque as suas babuchas com a frequência devida”. Sobre o conceito de “Persona”, conceito esse que foi maior aprofundado na abordagem psicológica da Psicologia Analítica, segue dizendo a Autora:



“Sua construção requer recortes aqui e ali, requer negação de partes não muito convenientes a tal adaptação. (“Persona”) em latim significa (“máscara”) e designava a máscara usada pelos atores no teatro. É significativa a imagem de que quanto mais a máscara adere à pele do ator, mais difícil a sua retirada! Não que não sejamos a (“persona”), mas aquilo que somos não se reduz a ela. Já adultos, adquirimos (“riquezas”) que podem nos ampliar as possibilidades existenciais, mas nos recusamos a trocar as velhas babuchas; não abrimos mão de estruturas que já nos foram úteis, mas já cumpriram seu papel, se desgastaram e não deveriam mais nos representar. Certos (“arranjos”) da persona, necessários em algumas fases da vida, tornaram-se obsoletos. Quantas vezes não (“remendamos”) o invólucro da persona? Quantos cacoetes anímicos não adquirimos, quantos (“entulhos”) não insistimos em carregar: são nossas velhas babuchas!”
 

 

 Mas para, além disso, podemos chamar a atenção para a sequência de acidentes e acasos que protagonizaram os efeitos no personagem por tentar se livrar daquelas babuchas. É como se as babuchas tivessem vida própria e articulassem movimentos de azar a fim de voltar para seu dono. Seria possível que o azar visitasse mais frequentemente a quem não trocasse suas babuchas em tempo devido?

 

Como se não pudéssemos dispensar facilmente as vantagens que tiramos da Persona, pois nem sempre estamos ajustando nossas condutas para uma maior adaptação. Segue dizendo a autora:  

 

“Louvarmo-nos do sucesso incomum: no conto representado pela excepcional compra feita por Abu Kasem de frascos de cristal e perfume de rosas, que ele venderia com muito lucro. Nesse momento, a vida está sendo generosa, mas ao invés de compartilharmos a generosidade recebida, oferecendo um “banquete aos amigos” (o que era esperado do comerciante) e comprando novas babuchas (ampliando os limites da persona, abrindo espaço para novos arranjos), insistimos na “mesquinharia”. É quando o acaso (ou seria o destino?) entra em ação e uma sucessão de fatos aparentemente aleatórios acontecem. Quando, enfim, percebemos que as babuchas estão causando estragos, já é tarde: cada iniciativa de nos livrarmos delas é vã e elas mostram o poder que a elas conferimos. Não deveríamos deixar passar o momento certo de atualizar nossas babuchas: deixar ir o que deve ir, flexibilizar limites, rever crenças e a necessidade de mantê-las, descarregar “entulhos”, renovar armários, dar mais espaço à vida! Ano novo, babuchas novas! “

 

Ao vermos tamanha grandeza de sentido envolvendo relação de Abu Kazen com essas babuchas, não podemos deixar de constatar que se tratou de uma relação violenta. Afinal, para Abu Kazen ao viver e lidar com tamanhas penas e multas, certamente teve algum tormento, com um quê de violação. Violação no sentido de uma afronta súbita que emerge nos arrastando em direção desconhecida ou indesejada. Mas que partem de um relacionamento entre, no mínimo, dois desafiantes, no caso aqui, Abu Kazen e suas babuchas. Que tipo de vida intima que ali transcorreu? Que tipo de vida intima eles deixaram de ter? Como se a negação de uma suficiente intimidade com o que se dá ou com o que se priva, se relacionasse com o tipo de relação que estabelemos. No caso de Abu Kazen a narrativa trata da provinda de confrontos violentos que o raptaram, levando-o para os julgamentos e penas. De fato, nessa tragédia participam de um lado uma forma de atitude (de Abu Kazen) em lidar com sua persona (babuchas). Abu Kazen viveu suas quebras de personas, persona sendo essa máscara em que colamos, como cita a autora se referenciando aos artistas e seus personagens, da dor deles em se envolverem e desvencilhar-se dos papéis que representam no teatro. A história não conta as demais sequências do personagem. O fim do conto é o personagem sendo absolvido pelo seu suplício, e admitindo serem as babuchas as causadoras de toda sua ruína. A moral da história: “Abu Kasem aprendeu, pagando enorme preço, o mal que pode ocorrer a alguém que não troque as suas babuchas com a frequência devida”. A necessidade de atualizarmos nossas personas, não se deve apenas para nos tornarmos seres mais bonitos e bem vestidos, mas, para além desse aspecto literal, de vermos essas trocas de babuchas como formas de se estabelecer uma experiência de legitimo interesse e significado com nossos impulsos interiores.

Esses impulsos interiores podem trazer à tona em última instância uma experiência um tanto violenta, uma vez que não tenha sido oportuna a possibilidade de o personagem ter tratado diferentemente a sua relação com as babuchas. Se não damos a atenção e entendimento que é devido à nossa persona, ainda que com algum sacrifício podemos evitar ocorridos tais quais como esses que se deram na fábula trazida. Como se na ausência dessa atitude mais atenciosa se germinassem os encadeamentos de acidentes e curiosos males acometidos. O personagem para se libertar das babuchas e seguir sua vida, necessitou passar por uma sequência de incidentes que o levaram à imposição de penalidades que apenas por um suplício final que atendido tornou possível a sua absolvição. O conto acaba por revelar que sacrifícios nem sempre podem ser evitados, de uma forma ou de outra esses encontram seus desígnios, a fim de serem ritualizados através das cerimonias, ou no caso julgamentos e demais ritos da vida social presentes nas leis, costumes e instituições.

Publicado por
Augusto Faria Roos - CRP 06/94283 - Psicoterapeuta Abordagem Analítica
Psicologia Clínica Psicologia da Saúde Supervisão Clínica

Psicoterapeuta Junguiano - Atendimento de Jovens e Adultos - Abordagem Teórica Psicologia Arquetípica .

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